Apresentem-me um homem que a partir de uma certa idade não se canse de ser velho e eu dar-vos-ei uma história diferente. Com a velhice perde-se a força nas pernas, a habilidade e a destreza nas mãos e nos pés, e até o coração, tão depressa acelera como logo a seguir falha e parece "pifar", como um motor que já está para além do prazo.
Com 82 anos, os mesmos da senhora dona Maria da Encarnação, sua esposa, Solidónio Matos ficou cansado de ser velho. Maria da Encarnação era a patroa da casa, servindo-lhe de amparo e companhia, um pouco à maneira como serve uma botija de pés, para aquecer as noites que vêm mais frias. Mas quanto ao resto… Bem, quanto ao resto, não passava de um corpo semi-morto, tão parado e cansado quanto o seu, que vivia inerte ao seu lado. Estavam ambos reformados e viviam uma vida calma e tranquila, até tudo se ter precipitado.
Como é que se pode mudar esta situação? Mas qual situação? A situação existencial de um casal de octogenários!
Solidónio passava o seu tempo entre as consultas no Centro de Saúde e as idas à farmácia, para aviar as receitas dos seus medicamentos. Era Sinvastatina, para o colesterol, Hyperexol, para a tensão arterial, Plavix, para o coração. E que tal Viagra, para voltar a fruir dos prazeres sensuais e sexuais, com a sua esposa? Farto da velhice e de um corpo que só servia para comer e dormir, Solidónio queria sentir-se novo outra vez, e o doutor Carlos Prudêncio, o seu médico família, na próxima consulta bem podia receitar-lhe aqueles comprimidos azuis, azuis porque andam na boca de todo o mundo, azuis porque quem os toma sente-se outra vez no céu, no auge da sua força e jovialidade, recuperando a sua antiga energia e virilidade.
Mas será possível a um homem de 82 anos mudar o curso do tempo? Solidónio achava que sim e por essa convicção enfrentou os olhares estranhos das pessoas, a ideia fixa que para a idade não há milagres, e até a perplexidade e o repúdio daqueles a quem a vida ainda se apresenta movimentada num vale de lençóis.
“Ele tomou Viagra, Ela chamou a polícia” é uma espécie de tragicomédia dos nossos tempos, com humor cáustico e negro qb, que não deixa, todavia, de nos interpelar em relação à nossa condição natural e existencial. O que é a vida humana? Depois de ter passado o primeiro terço, passar a vida a recordar? A idade, sobretudo se já se tem uma idade avançada, é má e ingrata. Mas porquê? E como é que podemos gerir o conflito entre a vivacidade da memória e das suas boas recordações num corpo já gasto e cansado, onde de mais a mais pode ainda co-existir com uma vontade em desacerto, que deseja muito para além daquilo que se consegue realizar?
“Ele tomou Viagra, Ela chamou a polícia”, de Miguel Almeida, um dos quatro textos que compõem a obra Já não se fazem Homens como antigamente, a publicar em Novembro, com a chancela da Esfera do Caos.
2 comentários:
Um livro que eu não vou querer perder!!
Olá!
Nunca li nada teu, mas este vou ler certamente.
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