29 de outubro de 2010

Excerto do texto "A Lâmina do Amor"

       “Estás aí?”
        A concisa mensagem havia de repousar na sua inóspita caixa de correio digital durante horas, até ser devorada em inquietos milésimos de segundos, quando a madrugada, inconformada, cedia já lugar à manhã.
        João não conseguira conectar-se com o sono. Este havia sido, irremediavelmente, afastado, naquela longa noite de Julho, pela ansiedade, pelo nervosismo, pelo calor sufocante que, teimosamente, varria a capital, mas, acima de tudo, pela sua invasora imagem, constantemente presente na sua memória. Meia dúzia de fotografias coloridas capturadas em cenários distintos, uma dúzia de extensas conversas insonoras, um vago e pálido perfil e uma presença virtual que, a cada dia, se impunha intempestivamente à sua vida real.
        Dois andares o separavam da rua, da avenida que carregava o nome da nação habitualmente designada como principal potência mundial. Lisboa começava timidamente a acordar. Os pássaros chilreavam veementemente, entretidos em pequenas e inocentes brincadeiras, ao mesmo tempo que espreitavam, de soslaio, a possibilidade de um pequeno-almoço gratuito. João esforçou-se por não despertar a sua esposa do profundo sono a que esta se havia entregue e fez, suavemente, deslizar o seu obeso corpo, parcialmente nu, até à casa-de-banho e daí até ao abafado escritório.
        Sentou-se à secretária, pousando os braços quentes na madeira maciça, ligou o computador e lançou o olhar para o exterior, vislumbrando, através dos vidros que apoiavam uma considerável porção de pó, os primeiros raios de sol a abraçar a cidade. De volta ao ecrã, certificou-se que abria o mais velozmente possível a inundada plataforma digital onde conhecera Andreia, assim se chamava a mulher de trinta e cinco anos que havia revirado a sua vida nas anteriores setenta e duas horas.


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"A Lâmina do Amor" é um texto de Pedro Miguel Rocha incluído no livro "Já não se fazem Homens como antigamente" da Editora Esfera do Caos.


25 de outubro de 2010

A primeira revelação: excerto da peça "Paciência de Chinês"

"Permitam que me apresente. Eu sou o fantasma deste teatro em ruínas. Não sei o meu nome mas sim o meu trabalho: assombrar este templo da mise-en-scène e garantir que todas as noites a peça «Paciência de Chinês» sobe ao palco. O meu salário? Cigarros.A eternidade paga-me em tabaco. Ignorem as minhas baforadas,por favor. Façam de conta que faz parte do espectáculo: um nevoeiro à moda do Shakespeare! O mestre da mistura do cómico com o trágico numa só peça. O artista que teve a lata de revelar as contradições da mente humana como se fosse um psicólogo, e deu ao público aquilo que ele queria: Otelo, Rei Lear, MacBeth,Hamlet, Romeu e Julieta, e muitas outras obras-primas. Infelizmente esta peça não é do mestre, mas de um aprendiz ainda muito verde nestas andanças. Mas não se queixem de má sorte.Eu sou um fantasma latagão, e mesmo assim tenho de o aturar pela eternidade afora.
Senhores e Senhoras, será a primeira vez que assistirão a este enredo em três actos. Mas, provavelmente, a trama vos será familiar.Fala de dois jovens enamorados que não fazem a mínima ideia de como amar. Numa cidade onde a vida corre stressada, a estética governa os brandos costumes, e o individualismo descambou em famílias disfuncionais. É na solidão das personagens que se centra a acção. Ao ouvirmos os pensamentos mais íntimos dos nossos protagonistas, os jovens Diana e Alexandre, percebemos que a sua relação luta contra desígnios insondáveis. Já não são os deuses gregos que controlam os nossos destinos, mas algo mais absurdo, como uma sociedade consumista e vazia de valores que apenas pede aos seus cidadãos que não assumam responsabilidades de gente adulta. Que lhes diz que já tudo foi inventado. E que se estiverem aborrecidos podem mudar de canal."

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"Paciência de Chinês" é uma peça de teatro de João Pedro Duarte incluída no livro "Já não se fazem Homens como antigamente" da Editora Esfera do Caos.